domingo, 27 de janeiro de 2013

A escrita perigosa de Débora Vallim

     "Cartas às Amigas" de Debora Vallim é um livro muito interessante, com escrita fluente e intimista, que me trouxe a alegria de ver a qualidade do texto deste pequeno livro. Não o defino como um livro de crônicas simplesmente pois, seu foco é a impossibilidade da existência, sendo esta tão cruel e nada confortável.
      Ao expor as dificuldades de se encontrar a felicidade na sociedade, a autora mergulha na complexidade da vida, dos pensamentos e dos sentimentos, relacionando-os com a sociedade em que vive, incluindo aí a família, os amigos, os outros. Apesar de admitir que está quite com as suas ambições materiais e que tem uma estrutura familiar relativamente boa, não consegue encontrar a verdadeira felicidade neste ambiente.
     Tudo o que ela escreve relaciona-se com a sua história, mas também é a história de uma sociedade que perdeu os vínculos sanguineos e comunitários, em detrimento dos vínculos profissionais e individuais. E muito disso eu já discuti aqui neste espaço e, como tal, a escrita de Débora Vallim relaciona-se com a percepção atual de que o ser humano perde algo muito precioso ao passar para a sociedade de consumo de massa e de competição individual pelo sucesso construído em cima do fracasso dos outros. Perde a socialização, a comunidade, a comunicabilidade.

     Seus questionamentos são bons e talvez ainda não tenhamos as respostas como, por exemplo, porque em algum momento, as pessoas pararam de falar dos seus problemas, pararam de se mostrar fracas e com dificuldades, onde foi que passamos a ver a vida apenas como sucesso (profissional e financeiro), independente de como se o alcança?
     E depois de alcançado o sucesso, o que resta? Uma das muitas passagens belas na forma de escrita e no questionamento deste livro está na Carta n. 1: "Cumpri o "protocolo da vida" como uma máquina indigna de erros. Nasci, cresci, estudei, casei, me reproduzi, trabalho, ainda. Tenho tudo. Acabei cedo, mas ainda falta muito tempo... e agora? Remete-nos ao "E agora, José?" de Drummond, alcançado o sucesso, gozado a vida, o que sobra?
     Outro questionamento é sobre esta sociedade onde as pessoas não olham para dentro de si mesmas, e, quando olham, não se vêem como indivíduos completos e atuantes, mas como indivíduos fora de contexto, um grau abaixo dos outros (pois os outros sempre aparentam ter mais sucesso financeiro).
     A questão deste embate entre ela e os outros parece ser o tema central, ela sempre se colocando como alguém que não está bem inserida no mundo, pois este mundo não a acolhe, não a completa, não a torna feliz. E os outros sempre estão a espreitar os defeitos e colocar o dedo nas feridas e aumentá-las se assim puderem.
     A autora questiona o mundo enfadonho que construímos, podemos citar um trecho da carta n.º 3:
     "Todos os anos os mesmos desejos, mesmas angústias e anseios, beijos, bebidas, excesso de comida e pratos exóticos...", e logo depois: "Hoje desejei só uma cama e hospital: lençóis limpos, silêncio externo que invade o corpo, medicamentos que aliviam a dor de estar vivo, dão trégua ao pensamento...".
     E são estes e muitos outros questionamentos que tornam o livro interessante pois o situa numa faixa de literatura perigosa que leva o leitor à beira de um precipício, prestes a cair, deixando-o alerta. Só para citar alguns exemplos, temos na Carta n.º 11:
     "Sinto-me farta da convivência, das perdas constantes, da falta de troca, da arrogância alheia, da soberba, da ausência de humildade, do sentimento humano de perenidade, dos humanos aristocratas, da pobreza que humilha, do alimento que não nutre, da grosseria diária, da frieza dos olhos, dos andróides que caminham ao nosso lado, da doença que infecta a mente...".
     Ou então, podemos ler na Carta n.º 12:
     "...grito e ninguém escuta, caio e não há quem estenda a mão. Esforço-me na limpeza e tudo permanece sujo, coloco perfume mas o odor da podridão impera. Cheiro de pus que invade as narinas quando me aproximo de alguém, cheiro de flores em putrefação, olhos sem visão - globo ocular vazio.".
     Mas é preciso compreender que a autora não fala, na verdade de si. Ela usa o recurso de falar de si mesma para criticar duramente a sociedade atual, este recurso de trazer para a primeira pessoa esta crueza é para dizer que todos nós, como sociedade, passamos por esta dureza, estranheza e dificuldade. Lembra que não é a pessoa sozinha que está doente, mas a sociedade atual, ao abandonar tudo o que nos faz humanos em troca de algo que nos faz máquinas virtuais perfeitas.
     Boa leitura, mas peço ao leitor que não leia este livro no alto de um edifício ou à beira da Dutra, pode dar vontade de se jogar.

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Editora Netebooks - Cartas às amigas