quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Bebedor de Auroras

     Tonho França lançou o belo livro "O Bebedor de Auroras", em que nos traz uma poesia lírica muito bem trabalhada, em que ele usa diversos recursos de estilo para dimensionar sua visão do mundo moderno vinculado a sua visão íntima de poeta repleta de aspectos valeparaibanos.
     Farei a leitura de alguns poemas e trechos de poemas  numa tentativa de explicar este poeta complexo e completo, começa no seu primeiro poema, constante de apenas dois versos:

     Enquanto Sonho

     Teço versos que a manhã
verte anônimos entre os homens.

     A primeira lembrança que me trouxe este poema é uma referência ao poema "Canção Amiga" de Carlos Drummond de Andrade em que escreve nos versos finais "Eu preparo uma canção/ que faça acordar os homens/ e adormecer as crianças" porque tecer versos e preparar uma canção são semelhantes mas enquanto Drummonnd tem este característica de impactar (acordar os homens), Tonho França vem se inserir sem alarde, querendo, ao mesmo tempo, participar da humanidade com o seu canto, aqui, já começamos a ver um recurso interessante que Tonho utiliza, ao usar "a manhã" ele pode indicar também o "acordar os homens", ou "amanhã" como um tempo futuro, de qualquer maneira, ele faz esta relação de herança entre o modernismo de Drummond e a atualidade da sua poesia.
     Na sequência, vem com "Tons de Maçã com Canela (tardes sem rotas e destinos)" em que ele coloca muitas das características e dos temas que vão permear todo o livro, que são o uso de figuras estilisticas combinadas como, por exemplo, a prosopopéia, a metáfora e a sinestesia nestes belos versos da primeira estrofe do poema:

      "Colho manhãs plenas de interrogações
      as minhas roseiras despertam mais cedo
      meus olhos, mais cansados, deságuam
       no verde claro-infinito do capim-cidreira."


     Tonho França usa e abusa com maestria de todos os recursos estilísticos possíveis sem cair em armadilhas  fáceis, ao contrário, usa com propriedade e cuidado para criar suas alegorias da vida humana, do tempo que passa, da solidão dos homens no seu mundo. Interessante é observar que o poeta não fala de Deus ou de religião mas escreve cada verso com beleza e significado que se aproxima de algo divino, no sentido de algo que nos enleva e eleva a outro patamar.
     Voltando a falar de características dos seus poemas, é importante frisar o ritmo que ele impõe, onde temos o exemplo a seguinte estrofe do terceiro poema do livro, "Sobre noites e poesia":

     "O tempo não é senhor de tudo
      O tempo não apaga tudo
      Até muda o humor das marés e dos homens
      Cercas e soberanias, domínios e propriedades"

     Concentremo-nos nos fonemas utilizados: "tem", "tu", "tem", "tu", "mu", "mor", "rés", "mens", "cer", "ni", "mí", "da" e temos o ritmo que ele coloca no poema, estas repetições vão acontecendo nos poemas de forma que dá um ritmo muito agradável. Além disso, recorrendo a mais uma estrofe do mesmo poema:

     "Tantas coisas em meu coração,
     Intangíveis por isso minhas
     E só minhas são
     E só minhas são"

     É muito interessante este jogo de "por isso minhas", ou "só minhas são", pois, ao falar de quantidade indefinida (tantas coisas), ele brinca com o som de "isso minhas" e de "só minhas" parece ler "sominhas", ou seja, quantidade e soma, ao mesmo tempo, ler "só minhas são" dá a entender "só minha ação", ou seja, só a ação dele que carrega o próprio coração de tantas coisas. É um jogo de palavras extremamente sutil e bem feito.
     Já em "Epílogo dos Ventos", usa de assonância para dar este ritmo, como vemos na seguinte estrofe (com os grifos em negrito meus):

     "O vento hoje não veio à noroeste
     O sol num silêncio avermelhado grave
     Atreve-se as cores dos meus roseirais


     As nuvens densas, tensas, faces de temporais
     A noite chega sem pressa e com aroma de definição-sentença
     O monjolo parece bater à pressa dos trovões
     Folhas secas bailam no ar em pequeninos redemoinhos"

      Com isso ele vai dando-nos a impressão do vento, do som da ventania, aguardando a tempestade chegar. Parece mesmo que estamos vendo toda a cena, o sol avermelhado, as nuvens densas, estou ouvindo o monjolo batendo, vendo as folhas no ar, é poesia toda cheia de sensações, sinestésica e cheia de ritmo. Lembrando que ele usou todos os recursos poéticos já citados anteriormente. Não se esgotaria aqui a multiplicidade dos recursos utilizados ao longo de todo o livro.
     Além disso, a temática poética de Tonho França está centrada no homem e seus caminhos e consequências dos caminhos, onde a frequência do uso das rotas e destinos, potes, compotas, temperos, trazem-nos a idéia do homem que trilha caminhos em busca do que dá prazer e felicidade na vida, não é um prazer fácil, uma vez que os caminhos parecem muitas vezes doloridos "e de nada me adiantariam agora lembranças,/ penitências, alegrias ou arrependimentos/ -Estou recluso nos versos - / E nas minhas dores e culpas/" de "Autorretrato".
     O tema das rotas ou dos caminhos é bastante explorado sempre em conjunto com o dos sabores/temperos (chá, compotas), vimos em "Tons de Maçã com Canela", "Castelos de Linhas", "Caminhos de Sol", para citar alguns poemas, junto com solidão e tristeza doces, não amarguradas como se poderia pensar, e isto é interessante também.
     Outro fato marcante é inserção do Vale do Paraíba na poesia de Tonho França. Em nenhum momento ele cita explicitamente sua origem valeparaibana, mas é tão claro ver isso colocado de forma universal, ou seja, poderia ser de outro lugar porque ele trata dos sentimentos, da vida, do mundo, mas vemos que tem a pitada, a origem valeparaibana quando ele utiliza palavras como procissão, monjolo, romaria, café com pão de manhã, ou em um belo verso de "Artificial", "o mar, desabando séculos de azul, tinge as cordilheiras", quando ele chama a Serra da Mantiqueira de cordilheira que, vista de longe, é azul. Questões da religiosidade inserida na alma do valeparaibano "e os homens perdidos, rasgam-se em gritos: Rogai por nós!" de "Noites sem Estrelas", ou virgem, rosário, hóstias em "Canto I" e costumes típicos como manter canteiros e temperos em casa.
     E quando pensamos que nos cansaríamos deste estilo de lirismo poético, Tonho França dá um salto e mergulha numa linha poética mais atual, metropolitana, urbana, direto e crítico:


   "Urbe-doida"


    "Toda bala é assassina
     se (en)contra uma vida
     não existe este papo
     de bala perdida"     

    Usando o recurso de colocar o (en) entre parenteses para dar novo significado, toda bala contra uma vida, é contra uma vida quando encontra uma vida. A este, juntam-se "Metropóle" e "Tempo Moderno", e depois ele vem com outro poema curto, direto, atualíssimo no jeito de fazer poesia:

  "Muros

    A toda hora
     A todo momento
     Estou fora ou dentro?"

    Inserindo-se de vez nesta grande metrópole urbana, conflituosa e confusa em que o Vale do Paraíba está se transformando.  Mostrando que é um poeta atuante, atualizado, contemplativo e crítico, necessário ser lido e compreendido, pois é de importância para compreensão do momento vivido.

    Só lembrando, alguns dos poemas aqui citados podem ser lidos no blog do poeta Tonho França, clicando no título deste comentário.