terça-feira, 3 de novembro de 2009

João Possidònio - o Conflito da Sociedade Industrial

Analisando o livro de João Possidônio Júnior
TAQUARA publicado em 2009

Possidônio faz uma poesia intimista de um menino que veio da roça e entrou de corpo e alma na vida urbana com a transformação da cidade e busca compreender-se neste mundo em que se viu envolto, luta contra a fragmentação da memória daquele menino, agora inserido na loucura da urbe, como ele chegou lá? Que caminhos o conduziram?

Sobras

A minha infância
ficou há dezenas de anos

esquecida num balcão
do armazém da vila.
Lá ficaram sonhos,
devaneios de poeta
e desejos de diversão...
Seguiu em frente uma certeza cheia de obrigação.
Sombras do dever...
Sobreviveu o homem...
... a criança não.

Tendo migrado da pequena vila, quase roça, de Eugênio de Melo, em que cresceu em quintais separados por muros de taquara, para a urbe de quase um milhão de habitantes se espremendo, correndo, lutando, literalmente, brigando um com o outro por mais espaço. E esta migração interna, dentro da própria cidade, também é uma migração dentro do próprio coração, ele migra da sociedade simples e pacata, de coisas certas e definidas, para a sociedade industrial, onde:

Sinal fechado

Ando pelas ruas
e avenidas do meu coração.
Acelero nas retas
da segurança e da convicção.
Vou devagar
nas curvas e voltas
das surpresas do destino,
das apostas e daquilo que não sinto.
Tenho poucos sinais abertos
a permitir o meu seguir
e muitos sinais fechados
que só fazem me impedir
de andar outros caminhos
e descobrir
o que me é desconhecido.
De tudo que andei
pouco aprendi,
De tanto que corri
muito me perdi

Leva-nos a crer que a experiências vividas pelo poeta ainda não foram totalmente absorvidas pois os sinais abertos, sendo poucos, o levaram pela via que ele segue, já os fechados (inclui-se nestes sinais, além do semáforo, as proibições, o aprofundamento nos sentimentos, a dificuldade da vida, a urgência das “retas da segurança e da convicção” que o impedem de sentir melhor as surpresas do destino, “aquilo que não sinto”). Metaforicamente, o poeta pode ser o próprio mundo, a sociedade industrial “De tudo que andei, pouco aprendi, de tanto que corri, muito me perdi”. Uma sociedade que se perdeu apesar de tanto correr.

Apesar de perdido entre os sentimentos, assim como a urbe em que vive, o poeta traz consigo resquícios da sociedade antiga, onde foi gerado, sendo o mais destacado, um resquício de machismo em que as mulheres, em geral, são vadias ou prostitutas, e os homens são anjos, ou símbolos da perfeição, executores das ordens divinas, isso é muito claro em:

Desejo de um anjo

Se eu lhe tocar a boca,
acariciar seus cabelos,
morder-lhe os ombros
e lhe tirar a roupa...
Se eu beijar seu pescoço,
apertar-lhe as pernas,
Afagar suas costas
e abraçá-la de novo...
Se eu a deitar na cama
e me jogar por cima,
lamber sua barriga
e fazê-la minha dama...
E ao ter você colada em mim,
eu, já desvairado e louco,
quero ter todo o seu corpo
num prazer sem fim.
Juntos num êxtase maior,
inteiramente nus,
anjo e puta,
embriagados do nosso amor.
E desfrutado do seu corpo quase todo,
se resta ainda uma pequena parte,
deixa-me que a desfrute
ainda que seja tarde.
Pois sem chance de volta,
pobre anjo, grito aos céus:
_ Meu Deus, por que me abandonaste?

Vê aqui uma das vertentes da poesia de Possidônio, que é a religiosidade presente sempre em conflito, aqui, o anjo caiu do céu e perguntou porque Deus o abandonou, quando, na verdade, ao se entregar aos prazeres carnais, quem abandonou Deus foi o anjo. Esta religiosidade conflituosa se manifesta em diversos poemas, muitas vezes associada à imagem da mulher como fonte do pecado masculino, também, algumas vezes, a mulher é a bruxa, cheia de mágicas e segredos, o vulcão, quente e indomável, vemos estas imagens em “Contato”, “Vulcão”, “Tempos Modernos”, “Condenação”, “Folha em Branco”, “Bruxas”, “Espíritos”, tudo isso é resultante do conflito trazido da sociedade anterior em choque com a sociedade industrial que prega valores diferentes, mais sexuais, anti-religiosos e hedonistas, ao entrar em choque o menino da pequena vila com o homem da grande cidade, entram em choque também todos os valores presentes nas duas sociedades, resulta daí esta relação conflituosa entre o poeta e a sociedade em que vive:

Conflito

Passas e não me olhas,
ages como se não me conhecesses mais...
És indiferente
e esqueces do que fomos
tempos atrás...
Nosso tempo
já é passado...
Agora
para mim
...imperfeito.
Em nossos corações
nunca teremos paz,
pois o que já fomos
não seremos jamais...
O hoje
não te traz do outrora.
És lembrança fugaz
que se edificou
no nunca mais.

E a inserção do poeta nesta sociedade de consumo é uma inserção conflitante pois ele não se enxerga nem em um mundo, o mundo industrial lhe diz que tudo é passado, o seu mundo antigo passa e não o reconhece mais, não o vê, sendo assim, os dois mundos não o reconhecem e nem ele se reconhece inteiramente pertencente a um dois, está dividido, muito claro isso em:

Moçambique

Naquele terreiro
de chão duro,
sons e canções antigas
preenchem minha memória
com batidas de pés,
sinos
e bandeirinhas.
Cores que ficaram para trás
na jornada dos anos.
Meu coração incandesce
nesta lembrança
e desperta o sertanejo
escondido atrás da gravata.
Bato com força o pé
no chão empoeirado
pela falta da chuva e de mato,
embalado pelo batuque
e pelas cantigas inspirado.
Quem vê não entende...
É o Divino Espírito Santo
que ainda está batendo
na minha porta
querendo foliar.

A principal característica do trabalho de Possidônio é este conflito entre a sua vida anterior e a sua vida atual, por isso, creio, fez questão de referenciar a infância para iniciar o seu trabalho. Dentro deste conflito que, no fim, é o conflito da sociedade brasileira, industrializada à força, em que jogou os seus habitantes numa nova sociedade mecanizada e hedonista, opondo-se à antiga sociedade mais comunitária e artesanal. É no fim, o conflito da industrialização acelerada e crescimento desordenado da sociedade da terceira e quarta ondas de Alvin Tofler. É a sociedade de hiperconsumo que se impõe à antiga sociedade da subsistência, vivida pelo poeta em seu quintal. O poeta perdeu sua infância e suas referências e busca uma nova luz para as coisas que enxerga e não quer que elas o tomem, apesar de se inserir nesta nova ordem como integrante atuante da sociedade de consumo, conquistando as benesses materiais desta, ao mesmo tempo, sofre com as perdas de suas referências de infância, familiares, comunitárias e religiosas.

Felizmente, para reencontrar o seu norte, ele mesmo aponta um caminho no último poema “Trancos e Barrancos” em que ele, em uma das estrofes, pede em desespero:

"Chamem Santos Chagas,
intimem o poeta Reginaldo,
acendam a lua Zenilda
e venham me resgatar".