segunda-feira, 28 de julho de 2014

A POESIA VULCÂNICA DE MARCOS GROZA

          Do Buraco à poça é um livro difícil de se ler e de se compreender. A grande quantidade de neologismos, metáforas, inversões e frases que parecem que não tem um fim ou um sentido é um desafio. Aviso a todos, a leitura é difícil, não é necessário dicionário mas é preciso muita imaginação e dedicação, leituras e releituras, tentativas de entrar num mundo muito diferente. Numa poesia muitas vezes rebuscada e de frases compridas, que o leitor terá de completá-las.
          Marcus Groza faz poesia como um vulcão em erupção, as frases vão jorrando da maneira que vêm à mente e se despejam quentes no papel com o intuito de buscar as emoções mais entranhadas do leitor e aí vem a necessidade verbal, pois esta emoção entranhada só pode ser retirada quando a poesia é lida em voz alta, com frases impactantes apoiadas pelo ritmo e pela respiração da leitura. Ler um poema destes de forma linear matará a poesia e o leitor de incompreensão porque a grande força é a oralidade.
          Acho que foi por isso que demorou muito para eu compreender este livro. Eu fui lendo e relendo e tentava entender o que significavam frases como no primeiro poema do livro, "Vocação":
          "eu vim para dizer obviedades" e depois mais para a frente: "Arranco do papel um única clave de sol e a devolvo qual aranha boa a um pentagrama de vento".
          Vou citar aqui pelo menos uma dezena de exemplos de frases:
          "aceno um rio/ desdobrado/ cavalo" (Da Janela, pg. 15);
          "A fruta-pão que dava no pé de guerra/ pântanos e túneis espantaram/ depois de engolirem as feras/ e o verde todo gramado" (Oroborus, nome da fruta, pg 20);
          "e, dia por outro, me converto, selenita da lua refletida nas águas" (Cinco cantos ao som da ressaca, pg 22);
          "Tuas opiniões nasceram gêmeas dos furadores de papel/ e dos grampeadores pouco usados sobre a mesa" (Autorretrato, pg 28);
          "o filho do contra que nasceu pela culatra/ cutelo azul fosco que não reflete a luz da lua", (Pranto chorado sobre o túmulo de um inimigo, pg 38);
          "Pro nosso ralo de fundo costura um pano/ me deita nas esquinas urina e muco";(Súplicas, pg 43);
          "você seca as avalanches fazendo montes na escada/ surripiando a pele dos meus irmãos", (Deslocanto, pg 45)
          "voa talvez toupeira pelo céu/ encoberto de vaginas/ ferrenho das gengivas/ onde cagou e adormeceu", (Sob Saturno, pg 81);
          Então, acabei por compreender que o poeta tem este trabalho visceral, jorrando palavras que, muitas vezes, parecem sem sentido mas que, no conjunto do poema, com o ritmo e a sonoridade pega o ouvinte e o encanta, trazendo-lhe emoções diversas e o chacoalhando por dentro, ainda que ele não entenda o porquê.
         Em leituras profundas dos poemas, minimizando a oralidade poética e buscando um sentido na poesia (se é que isso é possível no caso de Groza) encontro um poeta que procura estabelecer sua relação com o mundo, com a pessoa amada e com os próprios pensamentos, onde começamos com o próprio título estranho, "Do buraco à poça", estranho e tão óbvio que tentamos enxergar mais do que é, para se chegar na poça, precisa-se encher o buraco com água que pode ser uma enxurrada, que deve ser a maneira preferida do poeta, ou, voltando ao título, com a lava quente do vulcão que jorra do poeta.
         Com todas estas emoções que surgem com a audição dos poemas, e com todos os jogos e figuras de linguagem extremamente interessantes e fortes, o livro faz de Marcos Groza um poeta com grande capacidade que precisaria, em muitos casos, retrabalhar o poema que jorrou do seu vulcão e lapidar as pedras brutas-diamantes que foram lançadas, eles estão aí, um pouco de lapidação os tornarão mais belos.
        Nota: em troca de ideias com Marcus Groza, o autor me informou que pensa e repensa cada verso, então, fica aqui meu reconhecimento ainda maior pelo trabalho dele porque isso torna ainda mais forte a sua busca pela emoção do leitor/ouvinte. Corrijo aqui o comentário que fiz e agradeço pelas informações que ele me passou sobre o seu fazer poético, tornando ainda mais importante o trabalho que ele faz.

         Trago então, um exemplo de sua poesia:

"Autorretrato"

     Tiras pouco tão pouco leite da terra
que tuas mãos têm cheiro de suor velho
e o calor que te derrete não basta
para esquentar o pão cru
que por anos carregaste nos braços.

Este sol entanto muito suficiente é (e não ignoras)
para pôr gotas de suor no lóbulo das orelhas
pingando a golpes de pequenas frustrações
como brincos derretendo
sobre o chão que ainda podes pisar.

Melhor fora se não compreendesses
os bilhetes que adolescente enviaste a ti mesmo
enfiando nos bolsos das calças velhas que agora usas por moda
e ainda os trazes repletos como se de mensagens cifradas
de ágrafos e prolixos.

Podes lavar os veios que tens na palma da mão
mas a pele não vela moeda fiação destino
se enfeita apenas de dobras e cicatrizes
sulcando chão entre as pedras
desse trejeito teu de olhos amargos

Tuas opiniões nasceram gêmeas dos furadores de papel
e dos grampeadores pouco usados sobre a mesa
tatuaste a palavra amor nas pupilas com radiações de silício
que pesavam teus olhos como um telefone ocupado
as vontades obscenas terá que cometer porém.

     
          Neste poema, autorretrato pode ser que o poeta queira dizer que ainda não retirou tudo o que pode se si mesmo, ainda não deu o seu máximo, que está em construção, e este calor que ele sente é forte para a transpiração mas ainda não é forte para aumentar a sua criação,o pão cru, a massa poética que precisa fermentar e crescer, talvez ele se sentisse melhor se não ouvisse o chamado adolescente da poesia, mas agora, como poeta, ele tem de amar e praticar as suas vontades obscenas, que, diga-se, não são obrigatoriamente pornográficas mas sim, sem pudor, sem medo de ser poeta.
           Ler Marcos Groza é fundamental, é difícil, mas é uma voz muito forte. Força maior que se encontra no verbal, na audição, como um vulcão que gera um furacão interno.

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