quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Luiz Ruffato - O Verão Tardio

Esta obra de Luiz Ruffato é provocadora, no mínimo. Quando iniciei a leitura, achei muito difícil e complicada, não porque as palavras eram difíceis, nem porque o texto era de difícil compreensão. Porque o autor vai descrevendo o dia inteiro do personagem, iniciando-se quando ele chega em Cataguases-MG. Aí ele descreve literalmente o que personagem faz, faz as necessidades, sente calor o tempo todo, anda para lá e para cá, o que ele vê, mas não descreve o que ele sente, obrigando o leitor a decifrá-lo.
Ao contar exatamente como é o dia do protagonista, o autor se aproxima do Ulisses de Joyce. Este descreve um dia na vida de Leopold Blum, aquele descreve 4 dias na vida de Oséias.

O protagonista não tem nada a acrescentar. Uma pessoa desinteressante e medíocre, que não construiu nada interessante, não guardou dinheiro, não manteve relacionamentos, atormentado pela situação familiar nunca resolvida. Pequeno, careca, que se define como um fracassado, que perdeu o contato com o filho e com a ex-esposa. Cheio de manias, como a insistência de "limpar os óculos com a fralda da camisa".

No entanto, está em uma jornada particular para dentro do lugar de onde saiu, como se retornando à sua origem para tentar entender o que aconteceu na sua vida. Ao visitar os irmãos mostra a miséria humana em cada um deles, como miséria humana em cada extrato social brasileiro.

A irmã Rosana, primeira a ser visitada, classe média alta, vive um casamento sem amor, cujo marido é conhecido por negócios ilegais, cuja filha é uma mulher solitária. O mais pungente é a solidão das pessoas que vivem na mesma casa e não se encontram. O marido sempre fora, a irmã, sempre fora, a filha, sempre fora, às vezes se encontram na casa. Cada um com sua vida miserável de amor, solitários, que não acolhem nem um ao outro e não se importam um com o outro. Em que algum consumo de sonhos ainda faz acontecer, a viagem anual para Nova York, a academia, a amante, os carros novos.

Convidado a se retirar da casa da irmã, vai para o Hotel. O protagonista circula pela cidade, lembra dos amigos, um se tornou prefeito, outro o empresário que vive às custas dos gastos públicos, encontra um ex-professor de artes, aposentado, homossexual, acabado, sem amor, enganado e vivendo a própria solidão.

Na casa da irmã mais pobre, mostra como é a classe baixa, com filhos fazendo outros filhos, largando tudo para a mãe cuidar, com pouco dinheiro e fazendo muitas coisas ao mesmo tempo para juntar alguma coisa, com marido bêbado que nunca tem emprego fixo. Onde ela é a autêntica matriarca, com todos girando em torno dela.

Enfim, acaba encontrando o irmão mais velho, este ficou rico com fábrica de móveis, comprou maquinário na Itália, mas também se mostra solitário ao ser encontrado no sábado, refugiado no sítio.

Chama atenção a falta de entrosamento entre os irmãos, a falta de diálogo, a dificuldade de acolher um ao outro, o desinteresse pelo que o outro faz. Um que se vai e nunca mais retorna, outro que está na mesma cidade e não se visitam, a falta de diálogo é peça importante da história. Isto nos leva à reflexão atual sobre a falta de diálogo entre partes distantes que se intitulam direita e esquerda e nunca conseguem ouvir um ao outro. Parece que o autor quer nos mostrar que a origem dos problemas atuais do Brasil se encontra na destruição dos laços de cuidados entre as pessoas, no desinteresse de  um pelo outro, cada um vivendo a sua própria vida solitária e desimportante para o outro. Fica claro isso nos momentos raros em que o protagonista encontra um dos irmãos, uma ou outra pergunta sobre como está passando, a dificuldade de se abrir ao outro, o desinteresse sobre o que cada um é. A superficialidade dos relacionamentos. Em nenhum momento perguntam ao outro pela saúde de cada um (Um mínimo de interesse).

Mas há outros aspectos. A cidade de Cataguases também é um pouco do que é o Brasil. Quente, com muita gente andando pela rua, com o passado sendo constantemente destruído, com a cidade em eterna construção e reconstrução, com as pessoas se tornando evangélicas neopentecostais. Com as drogas e prostituição fazendo parte da vida, com a violência crescente. Com a classe média sonhando com os Estados Unidos, os ricos dando suas migalhas ao pobres, e os pobres tentando sobreviver. O rio que se transforma em esgoto denunciando a falta de saneamento básico.

Um Brasil interessante e contraditório, que, ao mesmo tempo que cresce economicamente e se transforma como a cidade de Cataguases, também constrói a ruína da sociedade, mostrada na ruína interior em que vivem os personagens pois não construíram em cima do amor, mas em cima da indiferença.

O que me leva a entender que o autor deseja mostrar que um dos grandes males da sociedade é a indiferença, que vai de encontro a algo que sempre coloco em discussão há alguns anos. A única saída para a sociedade é a alteridade, é a vida em contato um com o outro, contato íntimo e profundo.

Para alguns, o livro pode soar extremamente depressivo, para outros, difícil, para mim, soou tudo isso e, mesmo após o trágico final, em que o protagonista se enfia na mata para morrer, como se desejasse retornar ao útero da mãe no único lugar em que ela foi feliz. Ainda consigo enxergar que o livro é um grito de desespero para uma sociedade que está se matando pela indiferença e pelo consumo.

Aí reside a esperança, pois, é nas ruínas que reside o substrato do novo. Lembrando de Deleuze ou de Guatari, agora tenho dúvida. Resta-nos buscar este novo nos relacionamentos, nas dores e alegrias compartilhadas.